Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?
Folha de São Paulo
Para grupo de pesquisadores, nova literatura econômica recomenda o inverso, mais investimento público
Vivemos a mais longa crise econômica da nossa história e o ritmo de recuperação segue muito lento, apesar da enorme capacidade ociosa da nossa indústria, mantendo um alto nível de desemprego, incertezas sobre o futuro do país e um processo de empobrecimento de amplos setores da população.
Nesse ambiente de demanda reprimida, o governo deveria estar agindo como a experiência internacional nos ensinou após a grande crise de 2008/2009, oferecendo estímulos fiscais para que o país volte a crescer de forma consistente.
Contudo, nossas autoridades e muitos economistas ortodoxos parecem continuar reféns de um diagnóstico que dominou a narrativa política nos últimos quatro anos: a ideia de que o desequilíbrio fiscal é a raiz dos problemas econômicos e o excesso de gastos públicos é a sua causa.
Além de tal diagnóstico não ser confirmado pelos números, ele tem sido usado para defender uma política de ajuste fiscal, que reduziu o investimento público ao menor nível em 50 anos e não obteve sucesso em controlar o déficit público.
Apesar do evidente insucesso dessa política e dos prejuízos sociais que dela decorrem, alguns economistas, dos quais deveríamos esperar menos dogmatismo, insistem em manter de pé o teto de gastos –a regra fiscal que congela por 20 anos o gasto público na esfera federal, uma regra que não encontra precedentes no mundo desenvolvido e que está ameaçando paralisar a máquina pública.
O que nos remete à seguinte pergunta: a insistência em um diagnóstico e uma política equivocada reflete apenas uma fé cega ou estaria a serviço de determinados interesses econômicos e políticos?
REMÉDIO ERRADO: CORTE DE GASTOS NÃO GERA CRESCIMENTO
Para além dos mitos criados em torno do excesso de gastos públicos, o debate brasileiro também está preso à ideia de que o ajuste fiscal e o corte de gastos contribuem para o crescimento econômico, a chamada tese da “contração fiscal expansionista”, formulada por Alberto Alesina e outros economistas italianos na década de 1990.
Essa tese passou a ser desconstruída, desde 2012, pelos fatos e por novos estudos, até mesmo do FMI (Fundo Monetário Internacional), demonstrando as falhas da metodologia usada para embasar a conclusão.
Como argumentou Paul Krugman, a austeridade é um culto em decadência e a pesquisa que lhe dava suporte foi desacreditada. Há estudos que mostram que, além do efeito recessivo, a austeridade também provoca um aumento da dívida pública e uma piora da desigualdade social.
Mesmo autores como Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi, em texto publicado em 2018, reconhecem que a austeridade fiscal é contracionista no curto prazo e tem efeitos diferentes de acordo com as especificidades de cada país.
No Brasil, defensores da austeridade como Lisboa, Mendes e Gazzano têm argumentado que somos um caso especial em que a expansão do gasto “perdeu grande parte da sua eficácia” e o multiplicador fiscal é baixo.
Entretanto, os autores tropeçam nos dados e usam uma variável de resultado para ilustrar um estímulo fiscal, misturando a dinâmica das receitas e das despesas.
Os pesquisadores Sérgio Gobetti, Rodrigo Orair e Frederico Nascimento Dutra, em texto publicado em 2018 no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostram que no ano de 2015, por exemplo, os elevados déficits primário e nominal são consequências do movimento das receitas.
Simultaneamente, ocorreu uma forte contração de despesas, implicando um impulso fiscal negativo de 1,5% do PIB.
Diversos trabalhos empíricos têm adotado diferentes metodologias para estimar os multiplicadores fiscais, dos quais se destacam os trabalhos acadêmicos de Alan Auerbach e Yuriy Gorodnichenko.
Essa literatura indica que esses multiplicadores são relativamente elevados, apontando para a possibilidade de que a expansão fiscal seja eficaz para estimular a demanda agregada e a produção, principalmente na situação de altíssima capacidade ociosa como existe atualmente no Brasil.
Os resultados empíricos não deixam dúvida de que os multiplicadores variam ao longo do ciclo econômico. Na fase recessiva, com desemprego e capacidade ociosa, o multiplicador fiscal é maior.
Além disso algumas categorias de despesas públicas tendem a ter um efeito sobre o gasto agregado muito maior do que outras.
Para o caso brasileiro, Orair, Fernando Siqueira e Gobetti, em estudo premiado pelo Tesouro Nacional em 2016, estimaram que, nas recessões, o multiplicador das despesas com investimentos, benefícios sociais e com pessoal assumem valores da ordem de 1,68, 1,51 e 1,33 respectivamente.
Diante do exposto, a interpretação de que a crise brasileira é decorrente de excessos de gastos não faz nenhum sentido, assim como cortar gastos não contribuirá para a retomada do crescimento.
Não se quer com isso dizer que o desempenho macroeconômico, a partir de 2015, esteja relacionado exclusivamente ao corte das despesas públicas, pois a crise brasileira deve ser estudada a partir de suas múltiplas determinações.
Entretanto, todas as evidências mostram que a virada na política econômica para a austeridade em 2015 contribuiu para o aprofundamento da recessão.
CONSEQUÊNCIAS E ASPECTOS POLÍTICOS DA AUSTERIDADE
Em quase todos os países do mundo, mas especialmente nos países avançados, o Estado exerce um papel distributivo importante, por meio da política fiscal. Nos países da OCDE e na União Europeia, a desigualdade medida depois do efeito na renda dos impostos, das transferências sociais e dos serviços públicos como saúde e educação é muito inferior à desigualdade da renda bruta de mercado. Isso é fruto da atuação redistributiva do Estado.
O Brasil é o país da América Latina que mais reduz a desigualdade por meio de seu gasto social, de acordo com os estudos da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e de Fernando Gaiger Silveira. Essa redução ocorre, principalmente, via transferências às famílias e gastos sociais em educação e saúde.
Já o sistema tributário é concentrador de renda, pois há grande participação de impostos sobre bens e serviços, que penalizam os mais pobres. Portanto, o ajuste fiscal pelos gastos é uma estratégia que desmonta justamente o lado progressivo da política fiscal.
Como mostrado no livro “Economia para Poucos”, os efeitos sociais da austeridade já podem ser notados na restrição de acesso a saúde, educação, moradia e à deterioração do ambiente. Dada a sua seletividade, tais políticas impactam mais fortemente alguns grupos, especialmente negros e mulheres.
Mas há alternativas. Uma nota para discussão publicada pelo corpo técnico do FMI aponta que, nos últimos dez anos, houve diversas reformas nos regimes fiscais, constituindo as chamadas regras fiscais de “segunda geração”.
As principais mudanças foram o aumento da flexibilidade (como novas cláusulas de escape para períodos de baixo crescimento) e aprimoramentos em sua aplicabilidade.
Os que se opõem à mudança nas regras fiscais brasileiras argumentam que isso levaria à fuga de capitais, com consequente crise cambial e aumento da taxa de juros, em situação similar à da Argentina.
Contudo, apesar de os dois países terem dívida pública em patamar semelhante, a dívida brasileira é predominantemente denominada em moeda nacional e as reservas internacionais (US$ 380 bilhões) superam em muito a dívida de curto prazo.
Na Argentina, o percentual da dívida do governo denominado em moeda estrangeira é cerca de 80% e tem curto prazo de maturação. As reservas internacionais da Argentina (US$ 65 bilhões) não são suficientes para liquidar sua dívida em momentos de diminuição da liquidez internacional, ao contrário do Brasil.
A manutenção do teto de gastos representa um entrave à retomada do crescimento econômico, amplia a crise social e aprofunda o desmonte dos serviços públicos. Situação que tende a se agravar com a ameaça do fim da garantia de recursos para áreas prioritárias como saúde e educação.
É preciso urgentemente repensar a política fiscal, considerando seus impactos econômicos, distributivos e na garantia dos direitos humanos.
As evidências da literatura nacional e internacional, além dos dados da realidade brasileira, clamam por uma mudança imediata na condução da política fiscal.
Esther Dweck é professora do IE-UFRJ e ex-secretária de Orçamento Federal, Fernando Maccari Lara é professor da Unisinos, Guilherme Mello é professor do IE-Unicamp, Julia Braga é professora da Faculdade de Economia da UFF, e Pedro Rossi é professor do IE-Unicamp