Afinal, quem são os “economistas da Unicamp”?
Artigo publicado no IREE | Guilherme Santos Mello, André Biancarelli e Pedro Rossi
“Ou o Brasil acaba com os economistas da UNICAMP, ou os economistas da UNICAMP acabam com o Brasil”. Essa frase, repleta de ressentimento e intolerância, foi proferida por Roberto Campos no programa Roda Viva de 1991 e virou uma espécie de mantra para alguns jovens liberais, que a repetem em fóruns virtuais e até hoje enxergam Campos como uma referência intelectual.
Para justificá-la, o ex-ministro da ditadura militar (sim, vários de nossos liberais econômicos tinham e têm relações “não lineares” com a democracia) argumenta que os “economistas da UNICAMP” não aceitariam o fato de que a inflação sempre é causada por excesso de emissão monetária. Descontando o fato de que tal interpretação estreita sobre as causas da inflação perdeu toda sua credibilidade já nos anos 1980, o que a declaração de Campos expressa é uma enorme incapacidade de compreender o que é a “economia da UNICAMP”.
A chamada “escola de Campinas” é um projeto intelectual que assombra o liberalismo tupiniquim desde sua origem. Sua origem remonta ao projeto original da UNICAMP da segunda metade dos anos 1960, conduzido por Zeferino Vaz com o suporte de jovens economistas como João Manoel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, Wilson Cano e tantos outros. Posteriormente, a formação do IE-UNICAMP foi reforçada por figuras como Maria da Conceição Tavares, Luciano Coutinho, Carlos Lessa e diversos quadros de grande vulto intelectual e enorme impacto no debate público.
O projeto de criar uma universidade pública de excelência e inovadora trazia consigo, no campo das ciências humanas, o desafio de pensar o desenvolvimento brasileiro. Para cumprir essa tarefa, a UNICAMP reuniu jovens intelectuais que compartilhavam uma sólida formação humanista com forte qualificação técnica, muitos dos quais treinados pelos cursos de planejamento econômico da CEPAL.
O projeto intelectual a que se propunham era de grande envergadura: compreender a dinâmica do capitalismo internacional e a forma de inserção do capitalismo brasileiro neste cenário, com o objetivo de fornecer elementos de reflexão acerca das possibilidades de superação de nosso subdesenvolvimento.
Uma característica marcante do pensamento da “escola de campinas” é sua pluralidade. Ao invés de se apegar a uma única interpretação (ou escola) econômica, a geração original de pesquisadores do IE-UNICAMP promoveu um amalgama de diferentes ideias, não se importando com nomes ou rótulos. As referências teóricas deveriam servir ao objetivo de entender o mundo e o Brasil. Assim, partindo de Marx, Kalecki, Keynes, Furtado e Schumpeter (sem esquecer Minsky, Steindl, Hilferding, Hobson, Myrdal e tantos outros), a escola de Campinas foi capaz de incorporar contribuições de diferentes correntes para formar uma interpretação original acerca da dinâmica do capitalismo brasileiro e mundial.
Nesta trilha, desde logo os “economistas da UNICAMP” incomodaram alguns “economistas tradicionais”, que recusam qualquer interpretação que fugisse aos cânones dos (antigos) manuais. Teses como o “Capitalismo Tardio” de João Manoel, “Valor e Capitalismo” de Belluzzo, “Acumulação de capital e industrialização no Brasil” de Maria da Conceição Tavares e “Raízes da Concentração Industrial em São Paulo” de Wilson Cano são apenas alguns exemplos de trabalhos que se tornaram seminais em suas respectivas áreas.
Além disso, a forte participação no debate e na vida pública de alguns professores e ex-alunos da UNICAMP também gera incômodo, já que desafia a visão liberal na condução do Estado. Desde a década de 1970, os economistas formados pelo IE-UNICAMP têm colaborado com a elaboração e implementação de políticas públicas, a formação de professores e pesquisadores que lecionam nas principais universidades brasileiras e a participação no debate acadêmico e público, seja através de teses/artigos, seja com entrevistas e colunas nos principais jornais do país.
Apesar da intensa participação na vida pública brasileira, é importante ressaltar q nunca existiu alinhamento político único dos professores do IE. Desde sua origem, alguns professores do IE eram influentes no MDB de Ulysses Guimarães, outros participaram da fundação do PT, alguns foram quadros do PSDB, outros do PSB e mais recentemente do PSOL e Rede. Apenas como exemplo, o 1º escalão do governo FHC tinha quadros com passagem pelo IE/UNICAMP, como os ministros José Serra (Saúde), Paulo Renato Souza (Educação) e Luiz Carlos Mendonça de Barros (Comunicações). Assim como os governos de Lula e Dilma contaram com a participação de docentes e ex-alunos da instituição, a principal candidatura de oposição em 2006 teve participação ativa de economistas do IE/Unicamp na elaboração de seu programa, do mesmo modo que ocorreu na reeleição de 1998. A atuação decisiva em algumas das discussões fundamentais da Constituição de 1988; a estruturação dos fundos setoriais para o financiamento da Ciência e Tecnologia no Brasil; a construção da autonomia financeira das universidades estaduais paulistas, entre várias outras, são também contribuições de “economistas da Unicamp” para o país.
Voltando ao plano estritamente acadêmico, não existe uma característica singular dos professores e alunos; a marca do IE/Unicamp é justamente o pluralismo e a diversidade de ideias. Ortodoxia e heterodoxia econômica estão presentes tanto na pesquisa quanto no ensino. E, do ponto de vista concreto, não tem faltado reconhecimento sobre a força intelectual inovadora e criativa da instituição. Seguidas vezes foi premiada como melhor graduação em economia do país, além de constantemente receber premiações de melhores teses, dissertações e artigos em diversos ramos da pesquisa econômica. Alguns conceitos hoje amplamente difundidos no debate econômico, como a ideia de “financeirização” ou a “hierarquia das moedas”, por exemplo, há um bom tempo frequentam os debates no IE-UNICAMP e parte da produção intelectual de seus docentes. Em termos de formação, hoje é o centro que mais formou professores de economia para as universidades federais brasileiras, com ex-alunos da casa ocupando posições variadas e destacadas no mercado de trabalho, acadêmico e profissional, nos setores público e privado.
O ressentimento com a “escola de Campinas” e aos seus economistas, em suma, parece derivar mais de sua relevância intelectual e pública do que do conhecimento sobre o que é a instituição. Ao ousarem inovar e refletir para além dos limites dos cânones da economia tradicional, os antigos e os novos economistas da Unicamp atraem para si a intolerância daqueles que se aprisionaram em doutrinas ultrapassadas, repetindo de forma religiosa ideias que não são mais ventiladas mundo afora. Ou são movidos por outros interesses, bastante afastados de divergências acadêmicas ou teóricas.
Que o espírito crítico do IE/Unicamp seja alvo de intolerância e simplificações por parte de aguerridos estudantes ou combatentes de redes sociais (onde por natureza a profundidade e o rigor são recursos escassos) é até compreensível. Mais revelador (e relevante) é o uso desses rótulos e desinformação em ambientes supostamente melhor informados, nos quais se travam disputam fundamentais para o futuro do Brasil.