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Construção e desconstrução do modelo econômico distributivo

Capítulo do Livro “A classe trabalhadora e a resistência ao golpe de 2016” | Pedro Rossi 

Do ponto de vista econômico, a atual ruptura político-institucional representa a vitória definitiva de um modelo econômico de sociedade radicalmente oposto àquele que vinha sendo conduzido pelos últimos três governos petistas e rigorosamente contraditório com o modelo de sociedade previsto pela Constituição de 1988.book

Nesse contexto, este ensaio propõe breve narrativa sobre a construção do modelo distributivo no Brasil – suas virtudes, erros, limites e lacunas- e o seu desmonte que, conquanto se inicie no segundo governo Dilma Rousseff c
om a ascensão do discurso e da prática da austeridade, pode ser aprofundado, com sérios danos ao país, caso sejam aprovadas e implementadas as recentes medidas propostas pelo governo Temer-Meireles.

O êxito dessa transição apontará para retomada de uma forte tendência à concentração de renda na economia brasileira e para desconstrução do Estado Social, abrindo caminho para outro modelo de sociedade, não mais apoiada nos valores da solidariedade e nos princípios da cidadania, mas no individualismo e na competição.

 

A construção e os limites do modelo distributivo

Os governos do PT construíram um modelo de desenvolvimento com muitos equívocos, mas cuja maior virtude foi uma melhora no mercado de trabalho e na renda dos mais pobres. Apoiado na criação de um mercado de consumo de massas formado a partir de políticas de distribuição de renda e da ampliação do acesso ao crédito, esse modelo, entre 2006 e 2011, proporcionou um ciclo virtuoso de crescimento com distribuição de renda e mostrou que não há oposição direta entre aumento de salários, emprego e produtividade. Ou seja, os salários não impactaram apenas como custos de produção do lado da oferta, mas, também, do lado da demanda, gerando renda e crescimento. Ao contrário do discurso conservador, esse crescimento não foi artificial, tampouco foi puxado exclusivamente pelo consumo: nesse período, a taxa de investimento cresceu mais do que o consumo e do que o PIB, com exceção de 2009 por conta da crise internacional.

Esse modelo teve lacunas, eis que centrado na inclusão social pelo mercado de consumo de bens privados e não de bens públicos, permitindo à população mais pobre ascender ao mercado consumidor sem, no entanto, ampliar de forma adequada o acesso à cidadania e aos direitos sociais. Esse modelo também teve fragilidades que vieram à tona a partir da crise internacional de 2008 e que consistiram essencialmente na ausência de uma estratégia coordenada para o desenvolvimento produtivo. Adaptando os termos de Celso Furtado, o Brasil promoveu uma modernização dos padrões de consumo da população sem promover uma modernização equivalente da estrutura produtiva.

Nesse período, recuperou-se parte do arcabouço desenvolvimentista, mas de forma tímida e fragmentada. Sobretudo, não houve coesão institucional e planejamento estratégico. A política de crédito dos bancos públicos, por exemplo, pouco conversava com as políticas tecnológicas, que não dialogavam com a atuação das empresas estatais, que, por vezes, se opunham à política macroeconômica do governo. Nesse último ponto, a persistência de altas taxas de juros e, em particular, de uma taxa de câmbio apreciada contribuíram para o enfraquecimento do setor produtivo brasileiro.

Os efeitos da crise internacional agravaram os problemas produtivos e tornaram evidente a queda de competitividade das empresas brasileiras. O cenário internacional mudou completamente e acirrou a disputa por mercados, e as exportações de países como a China, diante da desaceleração da demanda nos países centrais, foram redirecionadas para países com algum dinamismo no mercado consumidor, como o Brasil. Nesse contexto, as cadeias produtivas brasileiras foram sendo corroídas pelo aumento do conteúdo importado e o empresário brasileiro foi se tornando cada vez mais um importador.

Erros de percurso e o industrialismo

Em 2011, quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência, o modelo de desenvolvimento já dava sinais de esgotamento por motivos domésticos (ligados à perda de dinamismo do ciclo de consumo e de crédito) e externos (por causa da crise internacional e do acirramento da disputa por mercados). A combinação desses efeitos diminuiu a capacidade da oferta de acompanhar a demanda interna ainda aquecida. Assim, o dinamismo da demanda doméstica começou a vazar para fora, aumentando os déficits externos, e a indústria brasileira tornou-se cada vez mais vulnerável e mais importadora de bens intermediários.

Era hora de mudar a orientação do modelo econômico e a opção estratégica mais adequada era reforçar a infraestrutura – produtiva, urbana e social – como elemento dinâmico e assim estimular o investimento e a produtividade.

Nesse plano, os resultados foram muito aquém do desejado. O governo apostou suas fichas no setor privado por meio de políticas de oferta como a ampliação do crédito subsidiado, as concessões públicas, o realinhamento de preços macroeconômicos (redução de juros, logo revertida, e a desvalorização cambial), a redução de custos de energia, dos spreads bancários e a forte desoneração fiscal. Essa última política marcou uma gestão fiscal desastrada, também caracterizada por forte ajuste fiscal em 2011 – que freou a economia brasileira – e por manobras contábeis.

Como resultado, o setor privado não respondeu aos estímulos do governo e a combinação de baixo crescimento com desoneração fiscal gerou uma enorme queda na arrecadação que deteriorou fortemente as contas públicas. Nada disso seria tão grave se não servisse de pretexto para uma virada na política econômica cujo efeito é a desconstrução gradual do modelo distributivo.

Ao fim de 2014 se anunciou um déficit primário de 0,6% do PIB, que certamente não é um resultado confortável, mas nada excepcional quando comparado a outros países, como o Chile (1,4% de déficit primário em 2014), dos Estados Unidos (3%) e do Japão (7%). Do lado dos estoques, a dívida bruta cresceu, mas estava longe do patamar de 2002, quando chegou próximo de 80%, e a dívida líquida permaneceu em patamar absolutamente confortável (em torno de 35%), próximo à mínima da série histórica.

Apesar disso, prevaleceu a narrativa da catástrofe fiscal, do colapso das contas públicas e de que era preciso um ajuste agudo do modelo econômico que recuperasse a credibilidade dos mercados e repensasse o papel do Estado na Economia. Estabeleceram-se os condicionantes necessários para a virada para a austeridade.

A virada para austeridade

A vitória do diagnóstico conservador na construção da narrativa econômica foi base para uma profunda mudança no modelo econômico. A partir de 2015 o “experimento liberal” apoiado em uma “terapia de choque” tem provocou um desajuste na economia brasileira, com aumento da inflação e do desemprego, transformando uma estagnação econômica na maior depressão brasileira desde a década de 1930.

Essa terapia de choque se constitui de um choque fiscal, um de choque de preços e um choque monetário. No plano fiscal, o gasto público primário do governo federal se contraiu 2,9% em termos reais em 2015 e o investimento público foi a principal vítima dos cortes, caiu em torno de 40% em termos reais. Essa contração, simultaneamente ao desempenho ruim das demais variáveis de demanda (consumo, investimento privado e demanda externa), se mostrou pró-cíclica, aprofundou a recessão e contribuiu para a queda da arrecadação, no mesmo período.

O governo optou por uma estratégia de choque nos preços administrados, defendida pelos economistas liberais, em detrimento de uma estratégia gradualista. Esse tipo de reajuste tem um alto grau de difusão em uma economia muito indexada, na qual a formação de preços é extremamente oligopolizada e conta com um alto grau de repasses de custos para o consumidor. O resultado foi a maior inflação ao consumidor desde 2002.

A taxa de juros Selic, que até outubro de 2014 estava em 11%, escalou para 14,25%. Com essa política monetária, o Banco Central tratou a inflação brasileira como se fosse um problema de excesso de demanda em um momento de contração de demanda e de choque de custos. Além de ineficaz para reduzir a inflação, a contração monetária contribui para a recessão ao aumentar o custo do crédito e o custo de oportunidade para o investimento produtivo.

Esses três elementos não explicam totalmente, mas, certamente, contribuíram para a crise econômica atual. Estamos piores do que no fim de 2014, quando se iniciou a austeridade com a alegação de que o crescimento viria pela recuperação da confiança dos agentes econômicos.

 

O golpe e o projeto de Estado Mínimo

A virada para a austeridade do governo Dilma Rousseff serviu como antessala para golpe. O rápido aumento do desemprego, a queda na renda e a inflação na casa de dois dígitos criaram as condições econômicas para uma ruptura institucional. Ruptura essa que está a serviço de um projeto econômico cujo objetivo é reformular os padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade. Esse se apresenta claramente no Projeto de Emenda Constitucional que configura a diretriz econômica de Temer-Meireles.

A PEC 241 estabelece um novo regime fiscal no Brasil no qual o gasto público primário não deve ter aumento real ao longo dos anos, ou seja, o gasto do ano em exercício não deve ser maior do que o gasto do ano anterior acrescido da inflação do ano anterior.

Nesse sentido, para além de uma virada para austeridade, o que diferencia o projeto atual é a tentativa de impor reformas estruturais que modifiquem por completo à gestão econômica e o papel do Estado na provisão de bens e serviços públicos.

Com a regra de gasto, conforme o país cresce, o Estado diminuiu relativamente ao PIB podendo chegar a um patamar em torno de 40% inferior em 20 anos. Da mesma forma, à medida que a população cresce, o gasto público per capita se reduz.

Trata-se de um projeto de Estado mínimo para o Brasil, absolutamente incompatível com os fundamentos da Constituição de 1988 e com a ideia de cidadania, que atribui aos cidadãos o direito à saúde, educação e outras garantias sociais e ao Estado o dever de prover esses serviços.

Em suma, a ruptura institucional veio para refazer o pacto social sem consultar a sociedade e, de forma ilegítima e antidemocrática, desmontar, não apenas um modelo econômico distributivo e social no país, mas também a possibilidade de remontá-lo.