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Desvalorização e política cambial no Brasil

Pedro Rossi | No site Carta Maior

 

A desvalorização cambial recente deve ser vista com cautela e a tarefa da política cambial exige um olhar transformador sobre o mercado de câmbio.

A taxa de câmbio não é apenas um preço de mercado mas também um instrumento de política econômica e uma ferramenta para o desenvolvimento. Uma taxa de câmbio competitiva é condição necessária, apesar de não suficiente, para uma estrutura produtiva diversificada e um projeto de desenvolvimento soberano e social. Considerando sua importância, esse artigo propõe duas questões sobre o tema; 1a) a desvalorização cambial não é uma panaceia para os problemas brasileiros e seus efeitos sobre a estrutura produtiva e a distribuição de renda são complexos e 2a) a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva depende da regulação do mercado de câmbio brasileiro.

Câmbio, estrutura produtiva e distribuição de renda

O efeito da taxa de câmbio sobre a estrutura produtiva depende da temporalidade da análise. No curto prazo, os efeitos são ambíguos uma vez que há uma enorme rigidez na estrutura produtiva. A oferta não responde automaticamente aos estímulos de preços e a substituição de produtos importados depende da flexibilidade de contratos e das redes de fornecedores. Nem sempre uma empresa brasileira pode substituir um insumo importado por um produto doméstico, seja por obrigações contratuais, seja porque o fornecedor doméstico simplesmente não existe. Ou seja, a desvalorização cambial se apresenta, no curto prazo, como um elemento de custo para as empresas. No caso brasileiro, o impacto de curto prazo do câmbio sobre a estrutura produtiva parece ser negativo para vários setores que, com alta penetração de insumos importados, repassam ao consumidor o custo da desvalorização, o que neutraliza parte dos ganhos de competitividade.

No longo prazo o problema contratual se resolve mas o surgimento de redes de fornecedores domésticos depende de novas empresas, empresários, expertise, tecnologia, que nem sempre estão disponíveis. Nesse contexto, se um longo período de apreciação pode quebrar cadeias produtivas e desindustrializar, a desvalorização cambial não necessariamente remonta essas cadeias e reconstrói o caminho da industrialização. Nesse ponto, é preciso ter claro que uma estratégia de diversificação da estrutura produtiva depende da articulação da política cambial com outras políticas macro, de crédito e industrial.

Alguns argumentam que a desvalorização cambial, ao reduzir os salários reais, aumenta as taxas de lucro e, consequentemente, o investimento industrial. Essa afirmação é uma possibilidade teórica, mas não é necessariamente verdadeira. Primeiramente, porque uma desvalorização cambial não precisa ser acompanhada por uma queda nos salários reais, ou seja, a desvalorização não é uma simples geradora de pressão inflacionária mas uma fonte de alteração dos preços relativos no âmbito de uma economia nacional, em particular, entre os preços dos bens comercializáveis e os preços de serviços. Nesses termos, o impacto distributivo de uma desvalorização cambial pode perfeitamente preservar os salários reais e aumentar o lucro dos setores produtores de bens relativamente ao lucro do setor de serviços. No caso brasileiro, o longo período de câmbio apreciado contribuiu para uma inflação de serviços acima da inflação de bens comercializáveis, o que gerou um ajustamento de preços relativos em benefício do setor de serviços.

Adicionalmente, pode ser um equívoco pensar na queda de salários reais como um incentivo ao lucro e ao investimento industrial. Dentre outros motivos, porque o salário não é apenas uma variável de oferta – ou de custo de produção – mas também de demanda. Logo, a queda dos salários reais domésticos é também a queda na demanda doméstica por produtos industriais. Nesse sentido, apostar na queda dos salários reais como elemento dinâmico é, para além de um desvio do projeto distributivo, um erro estratégico especialmente em economias como a brasileira onde o mercado interno é extremamente importante para o setor industrial. Ou ainda, a aposta em uma estratégia chinesa – de baixos salários e crescimento puxado pelas exportações – além de incompatível com uma estratégia distributiva, abre mão de uma demanda interna forte em um mundo com escassez de demanda.

O desafio brasileiro é, portanto, a construção de um modelo econômico onde a expansão dos salários e a inclusão social dinamizem o mercado doméstico e que isso seja canalizado para expansão e aumento da produtividade da indústria brasileira. Para isso, a desvalorização cambial será virtuosa se, por um lado, não penalizar o poder de compra dos salários e, por outro lado, evitar que o dinamismo econômico provocado pelo processo distributivo seja consumido pelo aumento de importações.

Sem mudanças institucionais não se sustenta um câmbio desvalorizado

No Brasil qualquer processo de desvalorização cambial está sujeito à reversão, uma vez que a economia brasileira é extremamente sensível aos efeitos do ciclo de liquidez internacional. Nesse contexto, há duas especificidades a se considerar, a primeira é o patamar da taxa de juros básica da economia. As altas taxas de juros praticadas no Brasil estimulam as operações de carry trade, que constituem investimentos alavancados motivados pelo diferencial de juros com outras moedas. Esses investimentos provocam a apreciação da moeda brasileira nos períodos de alta do ciclo de liquidez internacional, mas também provocam o efeito inverso na reversão do ciclo, quando as operações de carry trade são desmontadas. Já a segunda particularidade da economia brasileira refere-se à institucionalidade do mercado de câmbio brasileiro que se mostra permeável à especulação financeira, dada a abertura financeira e a liquidez no mercado de derivativos.

Essas características da economia brasileira, de alta taxa de juros e institucionalidade permeável à especulação financeira, tornam a taxa de câmbio real/dólar uma das mais voláteis do sistema internacional e impedem seu uso como ferramenta para o desenvolvimento. Nos últimos anos foram dois ciclos longos de apreciação (2003-2008 e 2009-2012) intercalados por períodos de depreciação cambial, todos recheados com muita volatilidade. Esse padrão de flutuação cambial, que acompanha o ciclo de liquidez internacional, reproduz a volatilidade dos índices financeiros e ressalta a natureza da moeda como um ativo financeiro.

A boa notícia é que esse padrão de flutuação não é imutável. Não há nenhuma lei econômica que imponha à moeda brasileira o respeito diário aos movimentos da liquidez global, nem a reagir instantaneamente às transitórias expectativas dos agentes financeiros. Tampouco essa flutuação é um desfecho inevitável das forças de mercado e da tecnologia, decorrentes de uma globalização financeira supostamente irreversível. Pelo contrário, esse padrão de flutuação cambial é uma opção política que decorre de uma institucionalidade, politicamente construída, e de um determinado modelo de atuação da política cambial que pode (e deve) ser aprimorado.

No início do primeiro governo Dilma, a experiência do IOF sobre as posições vendidas no mercado de derivativos, somada às outras medidas regulatórias como a oneração sobre a posição dos bancos e a regulação dos fluxos de capital, mostrou que é possível montar uma institucionalidade capaz de administrar a flutuação da moeda brasileira. Essa capacidade de administração ficou evidente no segundo semestre de 2012, em particular entre julho e novembro, quando a taxa de câmbio flutuou no intervalo entre R$/US$ 2,00 e 2,05, o que constituiu sua menor volatilidade desde o abandono do regime de bandas cambiais em 1999. A despeito do êxito inicial, as medidas regulatórias foram, uma-a-uma, removidas conforme crescia a pressão política do mercado financeiro e virava o ciclo de liquidez.

Portanto, a desvalorização cambial recente deve ser vista com cautela e a tarefa da política cambial exige um olhar transformador sobre a atual institucionalidade do mercado de câmbio. Uma taxa de câmbio mais adequada ao desenvolvimento econômico, que permita a passagem para outro padrão de flutuação cambial – menos volátil e mais adequado às necessidades do parque produtivo brasileiro – depende da regulação do mercado de câmbio. Em particular, essa regulação passa por uma inevitável redução da liquidez no mercado futuro e por uma transferência gradual de liquidez para o mercado à vista. O objetivo final dessas políticas é neutralizar o efeito da especulação na taxa de câmbio, que poderá flutuar mais próxima de fundamentos reais, sem distorções financeiras.

Créditos da foto: KEN TEEGARDIN