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Da Austeridade ao Desmonte: dois anos da maior crise da história

Le Monde Diplomatique Brasil | Pedro Rossi e Guilherme Mello

O Brasil já foi palco de crises econômicas e sociais gravíssimas, períodos de inflação fora de controle e de taxas de desemprego altas, mas nunca antes houve uma contração da renda tão forte quanto nos últimos dois anos. Foram quatro as grandes crises econômicas da história brasileira; a dos anos 1930, dos anos 1980, do governo Color e a atual. Em nenhuma delas, a queda da renda média real foi superior unnamed-27%, exceto em 2015 e 2016. Todas essas crises são multifacetadas e carregam diversos motivos explicativos. Contudo, há sempre um fator decisivo que justifica o caráter extraordinário que as diferencia das demais crises ao longo dos ciclos econômicos. Assim a crise dos anos 1930 foi detonada pela crise internacional. E a crise dos anos 1980 explica-se pela dívida externa brasileira. Nos 1990 o confisco das poupanças foi a principal razão para a gravidade da crise. E hoje? Vivemos a crise da austeridade e do desmonte do Estado.

A maior crise da história brasileira ocorre em dois tempos: no primeiro ocorre uma virada na condução da política macroeconômica e a austeridade, que abre o caminho para o golpe ao deteriorar a base de sustentação do governo Dilma. Já o segundo tempo da crise é caracterizado por um conjunto de políticas estruturais, cujo objetivo é descontruir os instrumentos que sustentam o Estado indutor do crescimento e o Estado promotor das políticas sociais: o desmonte.

1o tempo: A austeridade

O segundo governo Dilma tem início com a adoção da estratégia econômica do candidato derrotados no pleito de 2014, ou seja, com a realização de um ajuste contracionista. A ideia era a de que esse ajuste levaria ao crescimento, passando apenas por um curto período recessivo, necessário para recuperar a confiança nas políticas de Estado. Nesta agenda, a recuperação das contas públicas é ponto central, e o ajuste fiscal é o principal instrumento.

Em uma economia já fragilizada, o ajuste fiscal implementado contribuiu para jogar o país no círculo vicioso da austeridade onde cortes do gasto público induzem à redução do crescimento que provoca nova queda da arrecadação que, por sua vez, exige novos cortes de gasto. Assim, em 2015, apesar de todo o esforço do governo para reduzir as despesas, que chegou a queda real de 2,9% do gasto primário federal, as receitas despencaram em 6% e o déficit ficou ainda maior, evidenciando o caráter contraproducente do ajuste. Os investimentos públicos sofreram queda real de 41,4% no nível federal, o gasto de custeio caiu 5,3%, e o governo não logrou a melhoria das expectativas dos agentes econômicos. Pelo contrário, aeconomia só piorou e as expectativas se deterioraram, apesar de todo corte de gastos.

Mas o ajuste econômico proposto pelo governo foi muito além do “ajuste fiscal”. Joaquim Levy foi o símbolo da implementação de um ajuste cujo objetivo era reduzir não apenas o gasto público, mas também o papel do Estado e os salários reais. Pela lógica, com o mercado no comando, estimula-se os lucros e investimentos do setor privado. Trata-se de reequilibrar os preços relativos, ou get the prices right, como costumam dizer os economistas. Com essa lógica, os preços administrados foram reajustados de uma só vez, a gestão da taxa de câmbio foi liberalizada, retirou-se incentivos fiscais setoriais e diminui-se o crédito subsidiado. Como se não bastassem, a insensatez econômica foi ainda mais longe quando o banco central aumentou a taxa básica de juros até 14,25% para corrigir uma inflação essencialmente provocada pelo próprio governo quando ajustou preços administrados.

O impacto dos três choques econômicos (fiscal, monetário e de preços administrados) foi extremamente perverso. unnamed-1Como mostra o gráfico, o desemprego (medido pela PNADC) praticamente dobrou em dois anos, passando de 6,4% em dezembro de 2014 para 12% em dezembro de 2016. Essa rápida fragilização do mercado de trabalho contribui para a contenção dos aumentos salariais e assim como a inflação cumpre um papel semelhante: de corrosão dos salários reais.

Com tal degradação econômica promovida pelo rápido aumento do desemprego e da inflação, criaram-se as condições econômicas para o golpe político. Houve, portanto, uma subestimação dos efeitos da austeridade que historicamente nunca funcionou como remédio para desacelerações econômicas. Como propõe Mark Blyth, a austeridade é uma ideia perigosa cujos efeitos sobre o emprego, o bem estar e a distribuição da renda são extremamente perversos. Nesse ambiente de rápida degradação econômica e social, os mesmos economistas que recomendaram as políticas austeras passaram a recomendar a condução de Michel Temer à presidência com o argumento de que esse traria a confiança necessária para a efetividade dessas políticas.

2o tempo: O desmonte

Uma associação de interesses levou ao golpe político que destitui Dilma Rousseff do poder. De um lado, os membros da classe política inconformados com a resistência (ou incapacidade) da presidenta eleita em atuar para “estancar a sangria” ou salva-los da operação Lava Jato. De outro lado, os interesses em torno do projeto econômico neoliberal, fortalecidos pela crise econômica e por um sentimento de insatisfação generalizado. Temer assume para atender a esses dois grupos de interesse: governa para “estancar a sangria” e terceiriza a gestão econômica para os porta-vozes do novo projeto econômico. Assim, em um acordo frágil, as elites golpistas aceitaram o escárnio e a impunidade em troca da implementação de uma agenda para desmontar p Estado social e o Estado indutor do crescimento.

O desastre econômico e político em que se encontrava o Brasil em 2016 abriu espaço para o que Naomi Klein chamou de “doutrina do choque”, uma filosofia de poder que sustenta que a melhor oportunidade para impor as ideias radicais é no período subsequente ao de um grande choque social. É exatamente o que acontece hoje no Brasil: no momento da maior retração da renda da história, em pleno “Estado de calamidade institucional”, quando há claramente uma desarmonia entre os poderes da república, ocorre a imposição de uma agenda neoliberal, de caráter radical, cujo objetivo é transformar rapidamente os princípios e a natureza do Estado brasileiro e da Constituição de 1988. Ao atuar em várias frentes, imprimindo urgência e celeridade às reformas, a reação demora a se estabelecer e não é suficiente para sensibilizar uma classe política refém das elites e preocupada em salvar a pele.

A primeira grande reforma, que traz consigo o DNA orientador do novo projeto de país, é a reforma do regime fiscal, ou a PEC 55, que prevê a limitação constitucional dos gastos públicos por 20 anos, fato internacionalmente inédito. Em sua essência, a PEC impossibilita ao Estado o cumprimento das obrigações vigentes na Constituição Federal de 1988. É o fim do Estado garantidor de direitos, uma vez que a proposta impõe uma diminuição do tamanho e do papel do Estado, impossibilitando o funcionamento dos serviços públicos e da rede de proteção social. Além disso, ao canalizar toda sua ação para limitar o crescimento do gasto primário, o governo deixa de atacar alguns dos principais sorvedouros de recursos públicos nos últimos anos: as desonerações fiscais, a sonegação fiscal e o pagamento de juros nominais que respondeu por mais de 8% do PIB em 2015, mais ou menos o valor gasto com toda a previdência social. Ademais, o governo se recusa a debater o injusto e ineficiente sistema tributário brasileiro, que faz com que pobres paguem a maior parte da sua renda em impostos, enquanto ricos sejam desonerados e tenham a possibilidade de contribuir com menos de 30% de sua renda em tributos.

Já a segunda grande reforma estrutural apresentada por Temer é a reforma da previdência que propõe um conjunto de mudanças draconianas nas regras do sistema, com destaque para o aumento do mínimo de contribuição de 15 para 25 anos e dos 49 anos de trabalho para usufruir o beneficio pleno. Tal reforma é contraproducente ou hipócrita. Contraproducente, pois, diante das novas regras os contribuintes vão buscar driblar a previdência e se juntar aos 40% da força de trabalho que já não contribui, o que vai quebrar o sistema ao invés de “salvá-lo”. Hipócrita pois ela esconde o seu verdadeiro objetivo que é, justamente, quebrar a previdência social e ampliar o espaço de atuação dos fundos privados de previdência. No fundo, os porta-vozes da reforma escondem, por detrás das ginásticas contábeis, uma rejeição à própria existência de um regime de previdência social de repartição, fundado em um pacto de solidariedade social, e uma simpatia pelos sistemas privados de capitalização, fundados na lógica individualista. Se pelo menos isso fosse explicitado, não seriam hipócritas.

O ataque sobre os direitos dos trabalhadores não termina, porém, com a proposta de reforma previdenciária. O governo planeja aprovar ainda em 2017 uma reforma trabalhista, que reduza ou flexibilize diversos direitos trabalhistas, avançando na terceirização (hoje limitada aos serviços intermediários) e garantindo protagonismo da negociação direta entre empresários e trabalhadores sobre a legislação trabalhista. Em um momento recessivo como atual, com elevadas taxas de desemprego, a conclusão óbvia é que tal reforma, se aprovada, deve precarizar ainda mais o mercado de trabalho brasileiro, ampliando o recuo do salário real, que já foi forte em 2016.

A orientação neoliberal do governo Temer também aparece na sua relação com os bancos públicos e as estatais. No BNDES, a orientação é a de “enxugar”, reduzir o volume de empréstimos, extinguir a TJLP, rever a exigência de conteúdo local e reduzir o enfoque setorial dos empréstimos. Essa nova orientação resgata o papel subordinado BNDES exercido no período neoliberal da década de 1990, como financiador de poucas áreas, menor papel social e maior participação no processo de privatizações. Não por acaso, o banco transformou a área de “Estruturação de Projetos” em área de “Desestatização” onde o superintendente remete diretamente à presidência do banco. Com o BNDES reconfigurado, o Estado perde um poderoso instrumento de política industrial e de reação anticíclica diante de crises como a de 2009, quando o BNDES teve um papel importante na sustentação da produção industrial, das exportações e do investimento.

E por falar em desmonte do patrimônio público, a forma de enfrentamento da crise dos Estados da Federação, tem sido marcada pelas condicionalidades do Governo Federal exigidas na negociação das dívidas, dentre elas as privatizações e o enxugamento da máquina publica. Assim, austeridade e desmonte da máquina publica se combinam reforçando a contração da renda.

A mesma opção pelo “enxugamento” pode ser vista na nova gestão da Petrobras, comandada por Pedro Parente. Parente, ex-ministro de FHC, ampliou o plano de desinvestimentos da estatal, reduzindo em 25% a previsão de novos investimentos até 2021. Essa mudança de orientação combina perfeitamente com as seguidas vendas de ativos e campos de petróleo por parte da Petrobras, culminando na mudança do marco regulatório do Pré-sal, que tira o direito da Petrobrás de ser operadora única destes campos. Na prática, privatiza-se a empresa a conta gotas, com venda de ativos, retirada de atividades e abertura de espaço para as grandes petroleiras estrangeiras assumirem um espaço privilegiado no mercado de petróleo nacional.

A Petrobrás sempre foi um instrumento de desenvolvimento, um sistema que vai do “poço ao posto”, a começar pela exploração do petróleo bruto até a venda e comercialização de derivados e outros combustíveis de gasolina. O controle dessas cadeias produtivas permite estimular a geração de renda e emprego, agregar valor à produção, priorizar insumos locais, absorver choques de preços externos, contribuir para soberania energética, gerar tecnologia, etc. Contudo, ao abandonar diversas áreas de atuação, como a petroquímica, os setores de biocombustíveis e fertilizantes, a Petrobras caminha para se tornar uma mera exportador exportadora de óleo cru e importadora de máquinas e equipamentos.

Portanto, a política econômica do governo Temer atua em dois planos. No primeiro desmonta-se a capacidade do Estado de promover as políticas sociais e fragiliza-se a posição dos trabalhadores. Nessa direção, destacam-se o novo regime fiscal que compromete o gasto social, as reformas da previdência e trabalhista. No segundo plano, desmonta-se a capacidade do Estado de induzir o crescimento e de transformar a estrutura produtiva por meio do novo regime fiscal que limita o gasto com investimento público, a privatização da gestão dos bancos público e da Petrobras.

Por fim, com a austeridade que tem inicio em 2015 e o desmonte promovido pelo governo golpista, o Brasil vive a maior retração da renda da sua história. Enquanto isso, o discurso dominante, fazendo uso do “oportunismo das defasagens” ao tentar atribuir a crise ao intervencionismo estatal anterior a 2015. Contudo, quanto mais o tempo passa, menos credibilidade tem esse discurso. Assim, se o Brasil chegar a 2018, as urnas vão repudiar o discurso neoliberal. Resta saber o que vai sobrar do desmonte.