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”Austeridade é política de classe a serviço dos privilegiados”

 Carta Maior | Tatiana Carlotti

‘Economia para Poucos’ analisa impactos sociais da política de austeridade imposta no país desde 2015. Confira entrevista com o economista Pedro Rossi, um dos organizadores do estudo.

O impacto social da política de austeridade adotada pelo governo Temer é tema do segundo volume do documento Austeridade e Retrocesso, lançando em 7 de agosto, no Senado Federal. Organizado pelos economistas Ana Luíza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi, o estudo traz um diagnóstico impactante sobre o desmonte das políticas sociais promovido pelo golpe.

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Ferramenta disponível para a disputa da opinião pública, sobretudo neste momento eleitoral, o documento traz dados, gráficos e análises que provam a falácia da política de austeridade, em particular, da Emenda Constitucional 95 que congela, por 20 anos, os investimentos e gastos sociais em áreas vitais como saúde e educação.

Ao longo de quase setenta páginas, é possível ter a dimensão do retrocesso em várias áreas. “Trata-se da desconstrução de tudo o que foi edificado a partir da Constituição de 1988”, aponta Pedro Rossi (Unicamp). A mensagem do documento é clara: os gastos sociais são cruciais para a redução da desigualdade brasileira e para a garantia dos direitos humanos básicos.

Disponível online (confira aqui), o estudo foi lançado juntamente com o livro Economia Para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil (Autonomia Literária, 2018). Como explica Rossi, o documento é uma síntese do livro para estimular o debate na sociedade, “a opinião pública precisa saber qual é o impacto da atual política fiscal nas várias desigualdades (de gênero, de raça, de renda, regional) do país”.

Acompanhe a entrevista:

Pedro, o que os leitores vão encontrar no livro e no documento?

Pedro Rossi – O documento Austeridade e Retrocesso é uma síntese mais didática, voltada para o debate público, do livro Economia para Poucos. Ele também agrega as discussões realizadas no âmbito do Observatório da Austeridade. No livro, nós analisamos o orçamento público articulado com as áreas sociais, ou seja, a política fiscal e como ela incide nos direitos sociais, humanos e ambientais. Em cada área, nós analisamos a situação orçamentária naquilo que ela impacta concretamente na vida das pessoas.

Escrito por especialistas de várias áreas, o livro tem um capítulo inicial em que abordamos o conceito de austeridade e seus impactos macroeconômicos; outro sobre a relação entre austeridade e desigualdade, elencando estudos internacionais que evidenciam o aumento da desigualdade em países que adotaram a austeridade; e analisando o impacto distributivo da política fiscal brasileira.

Aí começam os capítulos onde analisamos os cortes de gastos e o impacto da Emenda Constitucional 95 em diversas áreas como seguridade social, saúde, educação básica e superior, agricultura familiar e a questão agrária, meio ambiente, cultura, questões de gênero, segurança e direitos humanos.

Grande maioria da população ouve falar nos noticiários, mas não compreende como funciona a política fiscal no Brasil.

Pedro Rossi – Política fiscal é por natureza redistributiva. É decidir quem taxar, para quem transferir os recursos públicos, onde e com quem gastar. Ela sempre interfere na alocação de recursos e tem forte impacto distributivo. A política fiscal tem dois lados: o tributário e o gasto. O Estado brasileiro tem uma mão que tira, esse é o lado tributário; e uma mão que dá, esse é lado do gasto social.

No Brasil, o lado tributário concentra muito a renda. A carga tributária, inclusive, permaneceu intacta nas novas regras fiscais. Ela é extremamente perversa porque está focada em impostos indiretos que atingem muito mais a população mais pobre. Na prática, os mais pobres pagam o mesmo valor sobre o consumo de bens que os mais ricos.

O gasto social, por sua vez, é lado da política fiscal que beneficia a população mais pobre. Ele é fundamental para a diminuição da desigualdade social no Brasil. Gastos em saúde, educação, seguro desemprego, assistência social, previdência, transferências públicas para a população… São os investimentos e gastos sociais que garantem o mínimo de dignidade.

O que faz a Emenda Constitucional 95? Ela mexe apenas na mão do Estado que dá, obrigando-o a cortar os gastos sociais e deixando intacta a política tributária. Isso é insustentável. A desigualdade social no Brasil é muito grande e o gasto social tem o efeito de amenizá-la. No documento e no livro, nós fazemos uma defesa do gasto social como ferramenta de redução das desigualdades e de garantias dos direitos.

A quem interessa a política de austeridade?

Pedro Rossi – Austeridade é uma política econômica voltada para momentos de crise. Ela impõe a redução dos gastos ou aumento de impostos como “remédio” para a crise. Geralmente, redução e corte de gastos. É uma política extremamente equivocada porque gera desemprego, queda no crescimento, aumento da dívida e perversas consequências sociais.

Agora, a austeridade é uma política irracional? Evidente que não. Ela é uma política de classes destinada a favorecer determinados setores da sociedade. Ela gera desemprego, esmaga salários, precariza serviços públicos e com isso abre o caminho para as privatizações e para a oferta de serviços, antes oferecidos pelo Estado, pelo setor privado. Austeridade é, portanto, uma política de classes que beneficia apenas os privilegiados.

A austeridade é um dos pilares do neoliberalismo. De forma geral, o neoliberalismo se sustenta sobre a redução do tamanho do Estado via austeridade, as privatizações e a liberalização dos mercados. Ela é, portanto, parte fundamental de um programa que mercantiliza os direitos sociais. No momento em que a saúde deixa de ser pública e passa a ser privada, você mercantiliza a saúde e ela deixa de ser direito e vira mercadoria, e como qualquer mercadoria, só terá acesso à saúde quem tiver dinheiro.

É justamente isso o que estamos vendo acontecer no Brasil: um plano de desconstrução de direitos. E o estudo mostra claramente como isso está acontecendo setor por setor, apresentando vários dados. É um trabalho muito bem fundamentado tecnicamente e em diálogo com os movimentos sociais.

Os impactos já estão aí.

Pedro Rossi – Sim. Se pegarmos a questão ambiental, por exemplo. Qual o impacto dos cortes no orçamento para o Meio Ambiente e suas autarquias no aumento do desmatamento da Amazônia? Você corta os recursos e o cara do Ibama não tem como por gasolina no carro para pegar a estrada e fazer a fiscalização. É trágico, mas o desmatamento na Amazônia voltou a subir nos últimos anos.

Outro exemplo é o aumento da mortalidade infantil que decorre de uma crise grave que gera desemprego, fome e queda da renda, mas também da falta de recursos em saneamento básico, no sistema de saúde etc. O aumento do número de homicídios, feminicídios, violência doméstica que resultam da profunda crise e do desemprego, mas também do corte de políticas sociais fundamentais para dar assistência à população nesse momento.

Os mais pobres sofrem mais com a austeridade porque são eles que usam os serviços públicos e os programas sociais. A população negra é a mais vitimada pelo desemprego, pela informalidade e pela violência. E há um imenso impacto sobre as mulheres. Principais responsáveis pelo cuidado das crianças, quando o Estado corta os recursos para as creches, as mulheres não têm condições de trabalhar e aí recorrem às avós que, por sua vez, também estão tendo sua transferência social cortada pelo governo. Gera-se assim um ciclo de degradação das condições de vida da criança, da mãe, da avó. O que vemos é um encadeamento de eventos que vão se acumulando por conta dos cortes sociais.

Independentemente de se concordar ou não com a austeridade, a opinião pública precisa saber qual é o impacto da atual política fiscal nas várias desigualdades (de gênero, de raça, de renda, regional) do país. A austeridade é extremamente perversa. Ela degrada o meio ambiente. Ela sacrifica mais os pobres, portanto, é seletiva; sacrifica mais as mulheres, é machista; sacrifica mais os negros, é racista.

Desde quando é possível identificar essa deterioração?

Pedro Rossi – Os dados são claros. A deterioração começa a partir de 2015, quando houve queda do gasto real do governo central, que crescia há décadas. O governo Temer fez uma reforma estrutural instituindo permanentemente a austeridade no país. Segundo os cálculos da pesquisa, o governo gastou 19% do PIB em despesa primária em 2017; com a EC 95 e algumas variáveis que a gente estipula – por exemplo, crescimento de 2% ao ano em 20 anos –, esses 19% vão cair para 12% do PIB em 2036. O Estado brasileiro vai encolher. O que vai encolher? Gastos com saúde, educação, cultura, meio ambiente…

A EC 95 não é um congelamento de gastos, ela é a redução do tamanho do Estado. A população vai crescer, a economia vai crescer, mas o gasto público permanece parado. Este é um plano de Estado mínimo. É a desconstrução do que foi edificado a partir da Constituição de 1988. Aliás, a desconstrução do lado bom da política fiscal. O lado ruim, o da tributação que penaliza os mais pobres, ninguém mexe.

A austeridade tem chance nas urnas?

Pedro Rossi – O discurso da austeridade, de que é preciso cortar gastos, não terá voz nessas eleições. A população não quer isso. Esse discurso veio à tona junto com um processo antidemocrático que foi o golpe e a aplicação dessas políticas não teve passagem pelos meios democráticos. 70% da população brasileira é contra as privatizações, 90% acha que o Estado é importante para a saúde e a educação. As pessoas foram às ruas em 2013 para pedir mais serviços sociais e não menos serviços sociais. Mais educação, mais saúde, transporte gratuito. Mais e não menos direitos.

Nesse período de déficit democrático, o que está sendo construído no Brasil pelo golpismo não vai passar no pleito eleitoral. A continuidade disso depende de um reforço autoritário, por isso a gente quer levar essa discussão para as eleições, para que os defensores da austeridade explicitem sua posição.

Nós inclusive apresentamos alternativas à austeridade. Elas passam pelo fortalecimento da democracia e pela construção de um modelo de desenvolvimento que busque o crescimento com transformação social. A população brasileira não é conservadora do ponto de vista econômico, ela pode ser conservadora em termos de costumes, mas é uma população que acredita que o Estado tem um papel importante no oferecimento de bens e serviços culturais, sociais, humanos e ambientais.

Além disso, o avanço que tivemos recentemente está muito fresco na memória das pessoas, assim como o retrocesso que elas estão vivendo agora. Então, do ponto de vista da democracia, esse projeto não passa. Agora, tem de pensar as articulações e como o autoritarismo pode pesar nessa balança.

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